VIAGEM A PÉ PELAS NOVE ILHAS DOS AÇORES REALIZADA EM 2012 PELO JORNALISTA NUNO FERREIRA (REVISTA EPICUR E REVISTA ONLINE CAFÉ PORTUGAL, autor do livro "PORTUGAL A PÉ", EDIÇÃO VERTIMAG) APOIO VERTIMAG, Pousadas de Juventude dos Açores e SATA Contacto: nunocountry@gmail.com
Os bailes de chamarrita estão a conhecer um regresso em força e não deixa de ser curiosa que uma discoteca como "O Farol", nas Ribeiras, abra o seu espaço para algo que há uns anos era considerado ultrapassado. Também tive oportunidade de ver jovens no Clube Naval de São Roque do Pico a terminar uma noite de música de dança ao som de chamarritas e a dançá-las com a alegria e o orgulho identitário de quem sabe que aquilo é a sua música.
Manuel Canarinho, mestre da rabeca e voz fundamental na chamarrita do Pico, não tem dúvidas do impulso que esta tomou desde que ali foi Tiago Pereira gravar, enfeitiçado, o documentário "Não me importava morrer se houvesse guitarras no céu". Manuel Francisco Costa, director do Museu do Pico e também cantador e tocador considera a Chamarrita "a grande expressão cultural sobrevivente da ilha": "Mantem-se pura, não foi museulizada. As pessoas continuam a saír de casa para bailar espontaneamente, numa partilha do corpo, do afecto, do prazer".
Porquê um baile tão frenético em comparação com os bailes de roda nas outras ilhas? "Penso que tem a ver com a dureza e dimensão telúrica da vida no Pico. A chamarrita começa nos terreiros e nas casas particulares como compensação do sofrimento imposto pelo solo inóspito. Daí esta pulsação", explica Manuel Francisco Costa.
A chamarrita, afastada e quase extinta pela aparição das guitarras eléctricas, pela música de dança estrangeira e pela associação, a seguir ao 25 de Abril, ao passado, ressurgiu. "Houve uma espécie de nostalgia, pelo menos nas pessoas da minha idade, uma nostalgia do tempo em que aprendíamos a chamarrita, de um tempo em que fomos felizes".
Não quis acreditar. Ao fim de quase dez dias a auscultar uma janela de oportunidade para subir ao Pico, cheguei de manhã junto a uma das janelas de guilhotina da Pousada da Juventude do Pico e lá estava ele, soberano, limpo, clemente. Tinha umas résteas de esperança de lá poder ir acima porque a meterologia anunciava uma trégua no mau tempo entre 25 e 26 de Outubro.
Sorvi uma chávena de café à pressa, comi um papo seco e desapareci porta fora. Haviam sido tantos dias de borrasca que a oportunidade parecia duvidosa. Com efeito, a Ilha do Pico já não conhecia um dia de verdadeiro bom tempo desde, é curioso, o dia das eleições regionais.
Nesse dia 14 de Outubro estive na procissão e arraial nas Terras, perto das Lajes do Pico naquele que terá sido o último grande dia de sol. Ao fim do dia nuvens arroxeadas já tapavam o céu para os lados da Piedade. Contrastavam vivamente com o branco puro da igreja. Por momentos, temi que a distribuição de rosquilhas com que tudo terminaria depois da actuação da banda filarmónica tivesse de passar para o salão mais abaixo.
A banda tocou ainda sob o sol sobrevivente de fim do dia. O maestro tinha o mau tempo e o cenário de chuva eminente por trás e a luz ofuscante do sol bem na frente. A dada altura, lá pediu uns óculos de sol e tudo correu ordeiramente. Nesse dia também, em fim de festa nas Terras, um pequeno televisor no bar da sociedade local anunciava a vitória do Partido Socialista nas eleições regionais. Devo dizer, com respeito pela verdade, que eram muitos mais os que confraternizavam junto das rosquilhas ou de pratos de codornizes, minis de cerveja dos que procuravam saber o resultado. Comi um prato de favas, paguei e vim embora.
Depois, foi o que se viu. Dias e dias em que o Pico permanecia apagado pelas nuvens baixas. Era como se não existisse. Todas as manhãs lá ía eu à dita janela de guilhotina e tudo o que via era uma massa cinzenta e frustrante sobre a montanha. A juntar à depressão das nuvens baixas, o mar toldou e revirou, arrostando pedregulhos para cima do cais em frente ao museu de São Roque, explodindo de raiva nos rochedos negros um pouco por onde ía passando. Fui coleccionando fotos de grandes vagas embatendo em portos e baías e mistérios por onde ía passando.
Numa tarde em particular, quando caminhava entre o emaranhado de rochas do Cachorro e o Cais de Mourato, o Pico reapareceu por momentos. Apeteceu-me chamar-lhe todos os nomes mas o vulcão voltou a submergir lentamente por baixo de uma correnteza de nuvens.
Até que a 25 de Outubro, cheguei à deserta Casa da Montanha (no Inverno só abre aos fins de semana) e pus-me a trepar com aquela energia e fúria gerada por dias de ansiedade. Tive sempre comigo a felicidade de não ter a ameaça da neblina. Segui diligentemente os marcos, sem saber quantos eram. Agora sei que são 41. Devo dizer que, não sendo montanhista, dá-me muito mais prazer subir que descer. Parei sempre por breves momentos para beber água ou para restabelecer o ritmo cardíaco. De vez em quando, ía registando o avolumar de nuvens sobre a Ilha do Faial, nas minhas costas.
Ao fim de duas horas e meias, após passar por alguns pequenos vestígios de neve, cheguei à cratera do vulcão. À satisfação evidente de lá ter chegado acima seguiu-se imediatamente a frustração. “Mas aqui, cercado por estas paredes de pedra, não vejo nada”, pensei para com os meus botões. Trepei então o último cone, o Piquinho, pequenas pedras a resvalar, outras a exalar o calor e o vapor vulcânico. Devo dizer que para quem esperou tanto tempo, não foi mau de todo. Do Piquinho, pude ver São Jorge semi-oculta pelas nuvens e o Faial. O melhor foi mesmo aquela sensação imperdível de usufruir o vento livre do topo da montanha, um sopro de liberdade.
A descida foi bem menos romântica. A qualquer momento resvalava em pedregulhos, pequenas pedras soltas. Desta vez a Ilha do Faial surgia com bastante menos nuvens. Fui-me entretendo a ver se algum carro cruzava a estrada que passa na base, junto à Casa da Montanha. Ao fim de duas horas e meia estava de novo cá em baixo.
Tão depressa não surgirá uma janela de oportunidade assim, parece-me. No momento em que escrevo, o topo do Pico está oculto pelas nuvens e as previsões são de regresso do mau tempo. Quem sabe um dia voltarei.
O Cachorro e o seu dédalo de túneis criados na rocha foi de longe o lugar da costa onde mais me impressionou a força do mar. Por algum motivo foi o local escolhido para instalar o centro de energia a partir da força das ondas. Fiquei ali embasbacado a olhar para aquela enorme caixa de betão em cujo interior o mar entra e explode em ressonância e fragor: "Bruuuum!" De cada vez que recua, fico à espera da investida da próxima vaga, que desejo sempre que seja maior e mais brutal que a anterior. Dali até ao Cais do Mourato, outra zona tradicional de adegas muito visitada no Verão,a estrada segue plana como que em direcção à ilha da frente, ao Faial.
Este edifício e toda a zona envolvente tem uma longa história, toda ela envolvendo a captura das baleias, o seu desmanche e a sua transformação para uso industrial. Tudo terminou nos anos 80 mas a memória está na cabeça das pessoas e no Museu. Agora, aquele mesmo cais é palco durante o Verão de pelo menos um festival e acolhe pessoas de todas as idades que gostam de se banhar ali. Ainda na primeira metade do mês de Outubro vi lá uma senhora a banhar-se em dias de sol que mais tarde foram substituídos pelos de bruma e chuva fustigante.
Uma noite de Outubro o mar rebelou-se e encarregou-se de enviar pedras para a frente do que foi a fábrica das baleias e hoje é museu.
Mais adiante, no caminho que faço diáriamente para a Pousada da Juventude do Pico, o mar fustiga o muro e obriga-me a passar para o passeio do outro lado, não vá levar com um duche em cima.