
"Isto de cantar ao desafio é um dom que nasce com a gente”, conta-me o taxista e poeta popular João Leonel, conhecido como o “Retornado”, pouco antes do´início do Pézinho da Irmandade da Rua de Baixo, em São Pedro, Angra do Heroísmo. É um dos cantadores presentes e é seguramente um dos maiores cantadores da Terceira.

“Não se aprende, isto é um dom que nasce com a pessoa. Nasci assim, poeta popular. Depois, fui desenvolvendo o repentismo com os mais velhos. Mas não é fácil o improviso. O Vitorino Nemésio tentou improvisar com o Charrua (considerado o maior cantador de sempre) e despistou-se. Não tinha o poder do improviso…”
Leonel conta que há tempos estava no restaurante angrense “Adega Lusitânia” a cantar com Eliseu, outro cantador e na plateia encontravam-se alguns continentais. “Era gente da alta, uns tinham vindo jogar golfe, doutores. Não estavam a acreditar que eu improvisava no momento. Eu pedi à guia turística o nome de alguns dos de maior destaque, improvisei sobre eles, aí já perceberam..”
No grupo, conta ainda Leonel, encontrava-se um poeta. “Ouviu a sextilha com muita atenção e disse que era capaz de fazer também. Eu chamei-o, coloquei-o entre mim e o Eliseu, o Eliseu fez a sextilha…O homem faz o primeiro terceto, desistiu…”
Para que o desafiador não levasse a mal, Leonel disse: “Se acaso merecer castigo/ cantando a alta nobreza/ é por não saber o que digo/ perdoem-me por gentileza/ porque eu não passo de um mendigo/ da gramática portuguesa”. O outro levantou-se e foi dar-lhe um abraço.
Leonel é herdeiro juntamente com muitos outros- João Ângelo, Eliseu- de uma tradição muito antiga. Simplesmente, antigamente os improvisadores cantavam na moda da chamarrita, usando só duas rimas na quadra, a redondilha. Rimavam apenas o segundo verso com o quarto. Quando passaram para as quatro rimas onde se rima o primeiro com o terceiro e o segundo verso com o quarto, aperceberam-se que a chamarrita era demasiado apressada. O tempo não era o ideal para o cantador pensar os próximos versos.
Terá sido José de Sousa Brasil, o “Charrua”, a criar com o tocador Laureano Correia dos Reis a “moda do Charrua”. Essa moda adaptou-se ao desafio e a chamarrita passou para os bailes de roda.

Natural do Curato da Ribeira Seca, município de S. Sebastião, onde nasceu em 1944, filho de um lavrador, João Leonel começou a sentir o “dom” para as cantigas na escola. Vasculhava tudo o que fosse livro com rimas.
Participou nas Danças de Carnaval pela primeira vez com 12 anos. Um tio, que era o mestre da dança ou “puxador” não sabia ler e Leonel era quem lia as cantigas para ele as decorar. Um dia, descobriu que uma das cantigas não rimava. A princípio não queriam acreditar na palavra do garoto de 12 anos. A verdade é que a quadra não rimava.
Leonel escreveu o primeiro texto de Carnaval aos 13 anos e aos 14 anos estreou-se a cantar ao desafio. “Naquele tempo não era fácil porque havia um elenco de cantadores mais velhos e não davam espaço aos mais novos. Se me apanhassem em cima do palco esfregavam-me todo…”
Foi para Angola cumprir o serviço militar, regressou, casou e voltou para lá. Foi camionista e mais tarde montou um café e uma mercearia em Melange, no norte. “Estive lá 10 anos. Só voltei como retornado, em 1975”. Tinha 31 anos. Não ficou muito tempo. Em 1977 foi cantar à Califórnia a uma festa de emigrantes e acabou por lá ficar até 1981.
Quando finalmente assentou de vez arraiais na Terceira, alguns cantadores tinham emigrado e outros falecido. “Passei a ter o meu lugar garantido”.
Hoje, diz Leonel, o público da cantoria mudou. “A plateia é mais culta, mais exigente e se eu falhar uma rima toda a gente vai dizer “o Retornado falhou uma rima”. Cantar ao desafio com os veteranos, que já o conhecem, também é mais fácil: “Se eu cantar com um veterano, a meio da cantiga já sei como vai acabar. Quando é com um mais novo, tenho de o deixar acabar…”
O maior de todos os tempos, na opinião de Leonel, foi o Charrua. “É a minha opinião. Cantei com ele os últimos cinco anos da vida dele e espicaçava-o em palco. Dizia-lhe “já acabaste”. Ele sentia-se picado e respondia. Foi o melhor de todos”.
Sendo um dos mais velhos, Leonel está mais que habituado a todo o tema que possa aparecer em cima do palco. Normalmente, começa por se cantar em honra do santo padroeiro da zona e depois entra-se em diálogo com o outro cantador. O público, sobretudo os mais velhos, sentam-se me cadeiras que levam propositadamente para a frente do palco e ouvem com muita atenção. Não toleram ruído nas primeiras filas.
Cantam-se amores e desamores, a vida e a morte e tudo o que venha à baila. “Dizemos a brincar coisas sobre os políticos que a sério não poderíamos dizer. Somos o porta-voz dos que não têm voz”.
Daí a pouco, João Leonel será um dos cantadores a participar no Pézinho da Rua de Baixo. “Quem ajuda na festa do Divino Espírito Santo, gosta de um obrigado. É isso que fazemos. As pessoas destacaram-se na festa, nós cantamos ao desafio à porta de casa deles. Claro que temos de ter alguma informação sobre eles. Normalmente, o mordomo dá-nos alguma informação mas nós também vamo-nos apercebendo do que deram…”
Antes de seguir para o Pézinho, Leonel faz uns versos no momento: “O tempo fez-me promessa/ de vivermos em comum/ só que o tempo teve pressa/ e não me deu tempo nenhum”.
Esta informacao aqui
ResponderEliminarMuito bem elaborada
Por ela eu nao pedi
Mas ja lhe dei uma olhada
Este senhor Leonel
Merece o meu respeito
Faz bem o seu papel
Embora nao seja perfeito
Como retornado de Angola
Deve ter sofrido um bocado
Mas agora ele se consola
Ja nem pensa no passado