VIAGEM A PÉ PELAS NOVE ILHAS DOS AÇORES REALIZADA EM 2012 PELO JORNALISTA NUNO FERREIRA (REVISTA EPICUR E REVISTA ONLINE CAFÉ PORTUGAL, autor do livro "PORTUGAL A PÉ", EDIÇÃO VERTIMAG) APOIO VERTIMAG, Pousadas de Juventude dos Açores e SATA Contacto: nunocountry@gmail.com
Entro numa sala pejada de memórias marítimas. Do tecto em madeira desprendem-se alinhadas umas às outras dezenas de canecas. “Esta casa”, explica João Gomes Vieira, “é feita com madeira de salvados de navios. Estas portas aqui são do navio RMS Slavonia”.
O RMS Slavonia, um enorme navio transatlântico pertencente à britânica Cunard Line viajava entre Nova Iorque e Trieste, na Itália quando, em Junho de 1909, alguns passageiros terão pedido ao comandante para ver as ilhas. Envolto em nevoeiro, o navio acabaria por naufragar perto da costa das Flores entre o Lajedo e a Costa do Lajedo. Os cerca de 600 passageiros salvaram-se graças à ajuda das tripulações de dois navios transatlânticos alemães e de muitos florentinos.
O Slavonia levou meses a afundar e muitas peças do navio foram retiradas por locais. Aos poucos, João Gomes Vieira foi recolhendo, encaminhando para o Museu. Algumas, guarda naquela preciosa sala da Ponta da Fajã Grande. “Veja, esta papeleira de bordo também pertencia ao Slavonia”.
Na sala, guarda também salvados de outros navios que naufragaram na zona. “São peças que estavam abandonadas nas casas da ilha e que eu fui guardando”. Uma, por exemplo, pertencia a um navio grego que naufragou em 1967 perto da Ponta da Fajã. Outra pertence à barca Bidart. “A Bidart vinha da Nova Caledónia carregada de minério de níquel com 110 dias de viagem em 1915 e encalhou perto da fajã Grande”.
Nunca deixando a sua ilha mas viajando pelos Açores, pelo continente e pelos Estados Unidos, João Gomes Vieira dedicou uma grande parte do seu tempo à investigação da história e da vida marítima. Na série de sete livros “O Homem e o Mar”, o investigador florentino escreve sobre a cultura marítima açoriana. Das embarcações dos Açores do início do povoamento à inventariação do património marítimo, das histórias dos lobos do mar açorianos à baleação, cabotagem, construção naval em madeira, Vieira investiga tudo. Entre as suas recolhas, encontra-se um glossário baleeiro recolhido nas Flores e inúmeras fotos, muitas de particulares, outras dos Arquivos Públicos dos Açores.
Filho e neto de baleeiros, João Gomes Vieira gosta de dizer que “o mar é e melhor escola de formação de um homem. “A minha família veio para aqui há sete gerações”, conta, enquanto caminhamos na Ponta da Fajã, “viemos do Alentejo, de Viana do Alentejo a mando do Rei D. Manuel I”.
O bisavô de João Vieira Gomes foi um dos florentinos que embarcaram nos navios baleeiros que paravam nas Flores para abastecer. “Embarcou aos 17 anos, atravessou o Cabo Horn, o Alaska, esteve em São Francisco. Voltou mais tarde para a ilha, investiu em terrenos, ganhou dinheiro, morreu em 1907”.
Na família, muitos foram para os Estados Unidos como baleeiros, primos, tios. O pai de João Vieira Gomes foi o último dessa enorme rede de oficiais baleeiros na família. “O meu pai apesar de oficial baleeiro sabia que a luta no mar era muito desigual e nunca quis que fossemos para a baleação. Não contava as suas proezas. Só muito mais tarde, no final da vida me foi contando…”
Embora a sua profissão fosse em terra, Vieira Gomes sonhava com o mar. “Aproveitava cada viagem em trabalho para trazer peças para o museu. Fui muitas vezes no Transal (o avião da missão francesa nas Flores) a Santa Maria e a Lisboa e vinha carregado de cartas de navegação, livros…Enfim, desde rapazinho que guardei bússolas, binóculos. Uma paixão”.
A determinada altura, o trilho chega junto à falésia. A vista é soberba sobre a Quebrada Nova, por baixo, o Ilhéu De Maria Vaz, a Ponta do Albarnaz e o Corvo ao fundo, do lado direito. Valeu a pena atravessar ribeiras, lama, pedras escorregadias para ali chegar. Aquela zona da costa, uma das mais difíceis das Flores, já foi palco de muita emigração clandestina e de recolha de sargaço. No seu livro "Ilha das Flores-Roteiro Histórico e Pedestre", Pierluigi Bragaglia descreve como é possível com algum grau de dificuldade atingir a Fajã da Quebrada Nova pelo litoral desde a Ponta do Albarnaz.
As vacas encarregam-se em determinadas zonas de tornar os trilhos praticamente intransitáveis. Outras vezes, são árvores, quase sempre cedros do mato que caíram na última intempérie e cortam os caminhos. Outras vezes ainda, é a água das ribeiras que transborda e obriga a atravessar a corrente de água ou pedra entre pedra ou com as botas dentro de águas.
Exceptuando esses pormenores mais difíceis de uma caminhada nas Flores no Inverno, tudo é resto é deslumbrante. Os coelhos atravessam-se repentinamente à nossa frente. Numa clareira são três vacas que me esperam assustadas e fogem justamente para o trilho, entre ramadas de cedro do mato. O som da água das ribeiras a despenharem-se para o mar, o chilrear dos pássaros e o rumor das ondas lá em baixo acompanha a caminhada num oceano verdejante de pastos, amontoados de cedro e a Vigia da Rocha Negra ao fundo.
Luís Alves, professor na reforma, diácono, ex-presidente da junta de freguesia e ex-presidente da Câmara de Santa Cruz das Flores, tocador e cantador, vive ali em Ponta Delgada, uma autêntica varanda aplainada e verde sobre a Ilha do Corvo.
Apesar de ter nascido numa das mais isoladas e pobres freguesias da Ilha das Flores, nunca se resignou ao destino de grande pobreza. “Ui, eramos muito pobres”, recorda Luís, que conheceu a electricidade com 19 anos graças à instalação na zona dos radares franceses.“Havia uma família em Ponta Delgada que inclusivamente vivia numa furna”.
Em casa de Luís Alves viviam do que o pai, agricultor que trabalhava em terras de outros, ganhava. Tínhamos um porco, plantávamos batata doce, batata branca, milho, feijão, couves…A nossa ceia era sopas de leite com pão de milho e papas grossas de leite”.
Não tinham pão de trigo. “De vez em quando alguém mais rico dava-nos um bocado. Para ter farinha, levávamos a “moenda” (o milho secado) até a um moinho de água que aqui havia”.
Ainda em casa, faziam manteiga e nata para vender. “Não existia numerário naquele tempo. A nata e a manteiga era entregue ao senhor da loja (mercearia) que a vendia à fábrica de leite e trocavamo-las por géneros”.
Para conseguir ganhar algum dinheiro, íam apanhar sargaço. “Apanhávamos no Sítio do Vento, aqui na freguesia, 202 degraus para baixo e 202 para cima. O meu pai vendia ao quilo. O melhor sargaço era o que vinha enxurrado, batido. Escolhíamos o melhor e sempre dava para suportar a casa”.
Foi com o dinheiro que ganhou no sargaço que Luís Alves teimou em estudar. “Comecei por estudar sozinho porque não tinha estrada para ir até Santa Cruz. Depois ía até Santa Cruz e fazia três anos de cada vez. Fui ter com um senhor dos Correios e com um senhor metereologista que me ensinaram Física e Matemática. A professora primária (ensino básico) que vinha aí é que me ensinou o inglês e o francês. Fui fazendo assim, candidatando-me como aluno externo, primeiro nas Flores e depois no Faial”.
A chegada dos franceses e da sua base de radares para escrutinizar os mísseis que atravessavam o Atlântico mexeu com a pequena freguesia rural de Ponta Delgada. “Tivemos electricidade em 1969, mais cedo do que noutras zonas da ilha. Muita gente trabalhou nas obras de instalação de valas e electricidade e a população beneficiou do apoio médico dado pelos franceses”.
Foram os franceses que construiram a estrada que hoje liga Ponta Delgada a Santa Cruz. Durante a primeira metade do século XX, os locais ou iam a pá ou apanhavam boleia da "lancha da nata", que transportava a nata para a vila.
Na época em que os franceses se instalaram em Santa Cruz das Flores já Luís Alves cantava e tocava. “Eu, a minha esposa e o meu pai tocávamos e cantávamos música regional para os franceses, no Hotel que eles tinham em Santa Cruz. Normalmente, íamos lá quando chegava o avião de abastecimento deles, o Transal. Eu tocava viola ritmo, o meu pai tocava viola e a minha esposa cantava em dueto comigo”. Os militares franceses íam buscá-los e levá-los. “Não tínhamos carro. Tive o meu primeiro carro em 1985”.
Além de professor, autarca e diácono, Luís Alves foi jogador de futebol, dirigente desportivo, director da Casa do Povo local e ainda do Grupo de Folclore da Casa do Povo da Ponta Delgada das Flores. Ainda hoje, o reportório deste último, tem por base as recolhas feitas por Luís Alves.
“Andei pela freguesia a fazer recolha de temas juntos dos mais velhos”, conta. “Alguns foram trazidos de fora da ilha, como o “Vira”. No fim do século XIX, esteve a construir aqui o Farol da Ponta de Albarnaz um tal de João Figueiredo, conhecido como o João “Algarvio”. A minha avó dizia que tinha deixado algumas músicas e o “vira” era uma delas”.
Foi com essas músicas recolhidas em Ponta Delgada que Luís Alves partiu para os arranjos coreográficos do grupo de folclore. “Notam-se diferenças em relação a outros reportórios porque vivíamos muito isolados mas eu acho que é a diferença de ilha para ilha e de freguesia para freguesia que faz a riqueza do folclore”.
Luís Alves envolveu-se em práticamente tudo o que era a vida quotidiana e especialmente cultural de Ponta Delgada. “Fomos os primeiros a apresentar marchas de São João com letras e música minhas, celebravamosas Rondas dos Reis, a Passagem do Ano e o no Carnaval organizávamos danças de arco e espada, com um mestre e um contra-mestre vestidos à militar”.
Entre 1980 e 2000, organizou uma tuna com violões, viola da terra, bandolins e violino e mantem um grupo, o “Vozes do Norte”, com mais cinco elementos.
Catequista durante 35 anos e membro do coro da Igreja de Ponta Delgada, Luís Alves cursou teologia durante cinco anos e é actualmente um dos três diáconos dos Açores. “Só não posso consagrar a hóstia nem perdoar os pecados uma vez que sou casado. Meu Deus, eu às vezes não acredito na quantidade de coisas que faço ou já fiz”.