Começo então a atravessar pastos pela zona mais seca e plana da ilha, a caminho dos Anjos
VIAGEM A PÉ PELAS NOVE ILHAS DOS AÇORES REALIZADA EM 2012 PELO JORNALISTA NUNO FERREIRA (REVISTA EPICUR E REVISTA ONLINE CAFÉ PORTUGAL, autor do livro "PORTUGAL A PÉ", EDIÇÃO VERTIMAG) APOIO VERTIMAG, Pousadas de Juventude dos Açores e SATA Contacto: nunocountry@gmail.com
Nunca mais regressara ao Pico Alto desde que ali estivera em Fevereiro de 1989 a cobrir o horrendo e estúpido acidente de aviação que matou mais de 140 pessoas num charter que ía para a República Dominicana. Lembro-me de pormenores de que gostaria não me lembrar e recordo quando desci a uma freguesia, muito provavelmente Santa Bárbara ( já não recordo bem) e o padre mostrou as liras e dólares que a população recolhera e lhe entregara. Mostrou-me uma mão cheia de passaportes e notas que haviam voado desde o Pico Alto.
António Moura, do Arrebentão, contou-me agora, quando o visitei, que nesse dia estava com a mulher a trabalhar nas vinhas de São Lourenço. "Ouvimos um bruuum muito grande e eu pensei que eram as obras do porto, em Vila do Porto. Depois, vimos coisas a boiar no mar e papeís a voar..."
António e o irmão Manuel foram os últimos moleiros de Santa Bárbara. Os moinhos ainda lá estão, desactivados, num prado verde envolvido, na manhã em que estive com eles, em neblina fina e húmida. “Os dois moinhos são da família mas só um é nosso. O meu pai esteve na América entre 1922 e 23, depois voltou, casou e construiu o moinho em 1929”. O pai ainda trabalhou sozinho. Mais tarde pagava a moleiros até os filhos crescerem. “Começámos nós a tomar conta do moinho. Depois os moinhos de vento começaram a afracar por causa das moagens de motor, deixámos de mão…”
Apesar de possuir moinhos de vento, a família sempre trabalhou a terra, hoje uma raridade em Santa Maria. “O meu pai tinha terras, vacas e um carro de bois. Eu tive os primeiros sapatos aos 23 anos. Tinhamos sempre pão em casa com fartura e comíamos couves e o queijo branco que a minha mãe fazia”.
Naquele tempo, muita gente ía para a baía de São Lourenço trabalhar as vinhas. “Eram ranchos de pessoas. Hoje ninguém quer ir e tem vinhas abandonadas. Nós ainda vamos aguentando as nossas e fazemos vinho de cheiro para a gente. Dantes vendia-se todo e chegava-se a exportar pipas para São Miguel em barcos”.
Hoje, tal como na Ilha de São Miguel, a lavoura quase morreu em Santa Maria. Ao contrário dos micaelenses, contudo, os marienses não se viram para a produção de leite e preferem a da carne. “Aqui o negócio é a carne. O bezerro de Santa Maria é um luxo. Em São Miguel é preciso uma dúzia deles para pesar o que um pesa aqui”, diz António.
A emigração esvaziou a ilha mas António vê-a como uma bênção. “Havia muita fome, não havia que vestir, que calçar. Quando o padre António Leite chamou a atenção em São Miguel que havia aqui muita gente a precisar de emigrar, foi muita gente. Foi bom para os que foram e bom para os que ficaram”. Os que não emigraram ficaram com as terras dos que partiram : “Sempre limpávamos os prédios e recebíamos uma rendazinha”.
Dos Estados Unidos começaram a chegar os bens que dantes eram escassos. Primeiro, farinha, leite, mais tarde roupas.
A maioria dos emigrantes de Santa Bárbara, no entanto, estão no Canadá. A mulher de António tem lá toda a família. “Já lá fomos, é “snow” (neve) por todo o lado. Eu gosto mais disto aqui, aqui sempre trabalho por conta própria. Nunca trabalhei mandado.”
O ex-regedor de Santa Bárbara, António Baptista, celebrou 90 anos no passado dia 20 de Abril. É de um tempo em que a freguesia vivia da plantação de batata-doce, milho e trigo, cozendo o pão em casa, à luz do candeeiro de petróleo. «A luz e a água canalizada só chegaram depois do 25 de Abril».
Em 1962, escolheram António para Regedor de Santa Bárbara. «Fui escolhido devido ao meu bom comportamento". Enquanto trabalhava na moagem e na mercearia e loja de fazendas do pai, era a autoridade da pequena freguesia, na altura ainda com cerca de mil habitantes. «Hoje tem uns 400 e poucos, muita gente emigrou para o Canadá».
A pobreza em Santa Bárbara, como em muitas freguesias açorianas, levou muita gente a emigrar, sobretudo depois do padre local ter dado conta ao Governo Civil em Ponta Delgada da situação real que se vivia ali. Foi feito um rastreio casa a casa. Debandou muita gente.
A água e a luz eléctrica só chegariam a Santa Bárbara depois do 25 de Abril. «Penou-se muito, vivíamos aqui isolados, nem sequer um jornal tínhamos».
Depois de ter, em São Pedro, ficado já relativamente perto de Vila do Porto e da zona do aeroporto, regressei à freguesia de Santa Bárbara, onde conheci o último regedor, o último moleiro, a artesã e poeta popular Ana Fontes e de onde parti entre o nevoeiro para subir ao Pico Alto, descer por entre o arvoredo até ao Barreiro da Faneca e daí por entre pastagens já da zona ocidental da ilha, até aos Anjos.
Esta ermida, à beira da estrada que segue para Chã de João Tomé, foi construída em 1925. A escadaria tem 150 degraus, o número das contas de um rosário e dez patamares representando cada um dos Mistérios do Terço. Era domingo quando lá passei e como quase tudo em Santa Maria, a ermida repousava na mais pacífica das quietudes. Pedi desculpa ao homem que lavava as escadas. Afinal de contas, ainda carregava comigo alguma lama do trilho enlameado do Norte. "Suba à vontade, para limpar é preciso sujar primeiro".
E de repente, já não muito longe onde o trilho que liga Norte a Lagos é atravessado pela ribeira do Amaro, apareceu a lama, praticamente sem escapatória possível. Coloquei um pé numa pedra e quando ía a tentar conseguir um apoio seco e seguro para o pé direito...flop, a bota enterrou, de tal forma que tive de descalçar-me e içá-la. A bota, qual ser vivo, não queria obedecer-me. Raspei com a ajuda de uma cana o manacial de lama que a retinha consigo até a poder puxar. Quando a recuperei, foi a vez da bota do pé esquerdo se afundar na lama espessa do norte da Ilha de Santa Maria.
Caminhei com as botas emolduradas por uma camada robusta de lama até à ribeira que salta da falésia mais à frente. Foi lá que as lavei, sacudi, espremi, o que não impediu de seguir pelo asfalto da costa norte, entre Lagos e Feteiras, a fazer "plop, plop,plop".
Na minha caminhada até Norte, bastaria ter enveredado por um caminho à direita e teria ido dar ao complexo hoje fantasmagórico da Estação Loran, que a Marinha Portuguesa largou em 1977 e acabou vandalizado, ocupado por jovens veraneantes, objecto de grafittis e mensagens na parede de quem por ali passou em Verões mais ou menos recentes. O professor José Melo, meu dedicado cicerone enquanto permaneci na ilha, levou-me lá mais tarde, à arquitectura do abandono.
A população da zona, em especial da freguesia de Santa Bárbara, fala com carinho e saudade da presença da Marinha e da Estação Loran no norte da ilha. Os enfermeiros da estação prestaram muita ajuda e serviço de saúde a quem vivia isolado e longe da Vila do Porto.
Quase não vi pessoas durante a minha caminhada até Norte. Por vezes, percebia que ali vivia alguém ou que alguém cultivara um pedaço de terra junto a casa.
De vez em quando encontro ruínas mas é um facto de que encontrei muitas casas marienses recuperadas, grande parte usadas como casa de férias ou fechadas e à espera dos donos, emigrados "na América", no Canadá
A névoa cobrindo o interior da ilha e impelindo-me a continuar a caminhar junto ao litoral, desta vez até ao Norte.
São Lourenço vista do trilho que recupera a escadaria em pedra entre as vinhas, muitas já abandonadas. Tal como a Maia, São Lourenço é nesta época do ano um mar de casas à espera do Verão. O mundo ali parou e repousa, respira devagar. Um ou outro pescador, um café que encontro miraculosamente aberto e onde uma mãe leva uma criança que procura outra para brincar. "Oh filha", responde a dona do estabelecimento, " ela hoje não veio..." A mãe explica-lhe que vai ter de se entreter a ver televisão. "Brincas para a próxima..." Não tarda volta a chover, a chuva tardia da primavera de 2012.